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Cultura
Duas paixões
Matérias especiais na trajetória do Edu
Por Edu Pincigher
Não estaria assinando essa coluna se não fosse apaixonado por carros. Já contei o fascínio que tinha por Alfa Romeo nos anos 70. Ou da minha facilidade em identificar o ano de fabricação de qualquer carro dos anos 80 por detalhes como as polainas do para-choque ou o desenho dos retrovisores. Cheguei a ter, na adolescência, o desejo de estudar Engenharia, tal a paixão que nutria por automóveis. Seria uma forma de me aproximar do tema. Fiquei encolhido num cantinho até a vontade passar. Durou uns 5 segundos. E passou, ufa…rs
Tive a sorte de fazer dessa paixão a minha profissão. E por intermédio de algo que eu também gostava: escrever. Agora explicoo porquê do título da coluna. Do mesmo modo que sempre fui alucinado por carros, também sempre me sentia fascinado pelo trabalho da imprensa.
A sorte de mesclar os dois foi enorme. Já contei passagens lá do meu início de carreira, na Quatro Rodas. Mas foi na Motor Show, onde trabalhei de 1994 a 2000, que vivi meus anos dourados. Vivenciei as reportagens mais legais, sobretudo porque, modéstia às favas, algumas delas fui eu mesmo que idealizei e realizei.
Fiz muitas reportagens legais na Motor Show. Testei Dauer 962 Le Mans a mais de 300 km/h numa autoestrada alemã; guiei quase todas as marcas de carros mais relevantes do mundo (menos Ferrari); cobri mais de dez salões internacionais; fui a centenas de lançamentos de carros; conheci uns 20 países. Vou te contar três dessas reportagens. Por coincidência, todas foram feitas no Autódromo de Interlagos.
O título era “Beber e dirigir”
Cismamos de tangibilizar o efeito do álcool (não etanol, mas álcool, mesmo, de bebidas) no organismo dos motoristas. Isso foi em 1995 ou 1996. Um médico monitorou tudo. Era o Dr. Sérgio Tufik, doutor em Psicofarmacologia na USP, que nos orientou. Nos anos 90, eramuito comum ver acidentes de trânsito causados por embriaguez, mas muito, muito mais do que hoje.
Montamos o circo lá no estacionamento do kartódromo. Eram dois testes: o primeiro consistia em um circuito bem estreito de cones, cronometrado, repleto de curvas fechadinhas, para testar a habilidade do motorista. Sei lá, não lembro do tempo exato, mas cumpri o percurso em algo como 40 segundos e não esbarrei em nenhum cone.
E o segundo se media o tempo de reação ao uso dos freios, onde você vinha guiando a 80 km/h em uma reta, com vários instrutores nas laterais. Algum deles – o motorista não sabia qual – arremessaria um cone (simulando um pedestre que atravessa a rua correndo) e você teria que frear instantaneamente o carro. O instrutor media a distância entre o arremesso do cone e o local exato em que o carro havia parado.
Éramos (acho) em quatro motoristas, com doses diferentes de bebidas. Fazíamos os testes duas vezes. Primeiro, sóbrios. O Dr. Tufikanotava tudo. Em seguida, nós tínhamos que ingerir uísque. Fui contemplado no sorteio com a dose mais alta: era um shot triplo, dez e meia da manhã, caubói e só tinha um minuto e meio para virar o copo.
Mal devolvi o copo à mesa e já estava completamente grogue. Aos testes: aumentei em mais de 50% a distância percorrida no teste de reação aos freios, como se, na prática, tivesse atropelado todos os pedestres que atravessaram o caminho… e baixei meu tempo no circuito em mais de um segundo. Só que derrubei oito cones. Nada mais sintomático do que um motorista embriagado: você guia mais rápido e faz um monte de bobagens.
Um detalhe: a edição de Motor Show iria pra gráfica naquela tarde. Saí do autódromo por volta de 13 horas. Sentei no banco traseiro de algum carro e caí num sono pesado. Alguém da revista (que não havia bebido, óbvio) me levou pra redação. Chegando lá, fui praminha mesa, peguei os resultados do teste na mochila e liguei o computador. Mas quem disse que eu conseguia escrever a reportagem?
Outra matéria inesquecível
Foi quando reunimos seis esportivos médios dos anos 90 econvidamos ex-pilotos de gerações anteriores para testá-los na pista. Rolou muita emoção ao ver o reencontro de nomes gigantescos do automobilismo brasileiro, que não se viam havia anos. Todos eles, sem exceção, nem conheciam o “novo” traçado do circuito, refeito em1990.
Era uma lista de respeito: Fiat Tipo 16V, Citroën ZX 16V, Peugeot 306 S16, Renault 19 16V, Honda Prelude e Mitsubishi Colt GTi. Os pilotos? A nata: Bird Clemente, Luiz Pereira Bueno, Fritz D´Orey, Eugênio Martins, Chico Lameirão, Marinho César e Camillo Christófaro. Cada um deles guiou cada um dos carros. Meu grande parceiro na redação de Motor Show, Douglas Mendonça e eu nos dividimos e fomos de passageiro, colhendo as opiniões dadas pelos mestres a cada curva.“Fritz, se a gente tivesse um freio como esse naquela carretera com o V8 de Corvette? Ganhava tudo, Fritz”, exclamava o Camilão. E que tal o resumo do Bird: “o esportivo ideal é aquele com motor do Prelude, câmbio do Colt, suspensão do ZX e os freios de qualquer um.”
Mas tenho aqui que confessar que, de todos eles, e sem fazer comparações, o cara que mais me impressionou foi Luiz Pereira Bueno. Na hora de fazer fotos, eu sentei no ZX 16V e saí atrás dele pra andar rápido na pista. Ele de Renault 19. Meu carro tinha mais motor e mais chão: OK, ele havia sido um dos maiores pilotos brasileiros de todos os tempos. Andou até de F-1. E eu, ninguém. Feitas as devidas ressalvas, você não faz ideia do que suei praacompanhá-lo! Como era rápido!!
E o maior comparativo de todos os tempos!
Foi a última reportagem que participei na Motor Show. Reunimos 22 carros 1.0, em 2000, e rodamos por 24 horas ininterruptas na pista. Convidamos 60 motoristas comuns para revezar ao volante dos carros, guiando sempre em turnos de duas horas. A estrutura foi pensada nos detalhes: caminhão-tanque para reabastecer os carros, trailers para os motoristas dormirem nos intervalos, pneus reservas, estrutura de apoio como se fosse corrida (diretor de prova, bandeirinhas espalhados pela pista, ambulância, socorro médico).
Eu era o pole position, com o VW Gol Turbo. Ter sido o dono da ideia e organizador da porra toda… trouxe algumas vantagens, né? Larguei e, até em razão do desempenho muito mais acentuado (o VW EA111 1.0 16V Turbo tinha 112 cv, praticamente o dobro dos demais), já cheguei nos retardatários depois de três ou quatro voltas. Não era uma “corrida”. Tanto que ninguém podia ultrapassar 120 km/h nas retas. Mas é que o Gol Turbo tinha muito mais saída de curva, então logo cheguei no pelotão dos mais lentos.
Cada motorista, quando descia do carro, dava notas para acelerações, retomadas, frenagens, conforto, painel etc. Ao final dos turnos, tínhamos um conjunto maduro de opiniões para definir com exatidão qual carro era melhor em cada quesito.
O que a gente não previa era que mais da metade dos motoristas convidados… só iria guiar um ou dois turnos. Os caras mataram a vontade de pilotar no autódromo e foram embora. Resultado: ficamos em cerca de 28-30 abnegados. O plano inicial de guiar duas horas e descansar por quatro naufragou. Tudo bem, vai. Eu era (sou até hoje) bem fominha. Das 24 horas de produção, eu guiei exatas 22 horas.Se eu me diverti muito no primeiro turno, de Gol Turbo, depois de Ford Ka, Palio 16V (os carros mais legais), imagine o sono no meio da madrugada quando contornava a Junção e subia a reta dos boxes de Renault Kangoo 1.0? Você vinha esgoelando a terceira no Café a 100 km/h, punha quarta… e ele não tinha potência para ganhar velocidade.
O comparativo foi tão relevante à época que a Fiat, que lançaria a segunda geração do Palio alguns dias depois do nosso teste, resolveu bancar a presença de dois carros pré-série (EX 1.0 8V e ELX 1.0 16V), que chegaram ao autódromo com as frentes totalmente disfarçadas para que ninguém furasse o design final dos modelos. Ela não queria ficar de fora!
Um quarto de século depois, revivo a sensação de receber a bandeirada final e contabilizar – sem acidentes ou quebras – o maior comparativo da história do meio editorial, que persiste até hoje. Os carros não existem mais. Nem a revista Motor Show existe mais. Sóas memórias.
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